terça-feira, 30 de setembro de 2025

Crippling Alcoholism - "Camgirl" (2025)

Original in Pórtico  

This release was recommended by Bandcamp.
Crippling Alcoholism are described with the tags "rock", "goth" and "noise rock", but I don't think it does them justice. In the whole, the sound is more innovative than just a bunch of tags, which is good. The lyrics are both violent and melancholy in an existential way, and even though the music is too harsh for my liking, it has gripped me. I listened to the first couple of singles and I immediately followed the band. 
After hearing the entire album, I'd say that it sounds like it was written by a gansta rapper with goth tendencies (but ashamed of them). Both music and lyrics sound like a very weird mix of Birthday Party, O.Children and Body Count, and a pinch of grunge at times. I would be delighted if Crippling Alcoholism decided to embrace the goth tendencies with a full heart, but, then again, of course I would.
I recommend listening to "Mr. Sentimental" and "LADIES' NIGHT (feat. Luxury Skin)".

https://cripplingalcoholism.bandcamp.com/album/camgirl

 

domingo, 28 de setembro de 2025

The Walking Dead: Daryl Dixon - The Book of Carol [segunda temporada]

[não contém spoilers relevantes]

Em França, Daryl e Isabelle continuam a proteger Laurent de uma dupla ameaça. Carol descobre o paradeiro de Daryl e atravessa o Atlântico de avioneta para ir ter com ele.
Vou ser muito honesta, nunca pensei que Daryl Dixon em França resultasse. A primeira temporada foi surpreendente e, na minha opinião, melhor do que o original estava a ser há muitos anos. Esta segunda temporada não foi tão boa como a primeira (especialmente por causa do enredo de Carol) mas aconteceram muitas coisas interessantes.
Os dois primeiros episódios são mauzinhos. O primeiro episódio é tão mauzinho que me lembrou o pior de "Fear The Walking Dead", que nas últimas temporadas eu só via para rir. O problema era pôr Carol em França, uma vez que era suposto que Carol estivesse nesta spin-off desde o início, mas não foi possível. E a maneira como isto é feito é risível. Carol anda à procura de Daryl. Em questão de dias, encontra quem lhe diga que Daryl foi levado para França e logo de seguida descobre um homem que tem um avião. Este tipo, Ash, não só tem um avião como tem combustível com tanta fartura que se dá ao luxo de dar uma volta de avião de vez em quando, em lazer. Sabemos mais tarde que já passaram 12 anos desde o apocalipse e que Ash tem andado de avião este tempo todo sem que apareça ninguém para o incomodar, num mundo em que as pessoas se matam por meia dúzia de rabanetes...

Mau começo
Carol tem de persuadir Ash a dar-lhe boleia para França, e para isso faz uma coisa terrível. Quando sabe que Ash ainda está a fazer o luto de um filho que perdeu, diz-lhe que a sua filha Sofia estava em França quando o apocalipse aconteceu e que poderá ainda estar viva. Nós já sabemos que Carol mente que se farta, mas uma mãe usar a memória de uma filha morta para manipular alguém, sem ser por razões de vida ou morte, é de uma mãe que não sofre com a memória. Mais tarde, Carol diz que usou a mentira para ser "convincente", mas acho que nem a própria actriz Melissa McBride ficou convencida porque não conseguiu convencer-nos. Isto foi muito mal feito. Por outro lado, e isto já foi mais bem feito, durante esta temporada Carol tem de confrontar-se com o trauma de perder Sofia. Pode parecer tarde, tantos anos passados, mas faz sentido. Carol é o tipo de pessoa que enfia a cabeça na areia em vez de lidar com os problemas e que, de certa forma, mente também a si própria. É natural que o trauma aparecesse para a assombrar mais tarde ou mais cedo. Eu admito que isto me trouxe lágrimas aos olhos. A morte de Sofia foi um dos momentos mais chocantes de "The Walking Dead" e nunca houve oportunidade de lhe fazer o luto como devia ser. Gostei muito que esta temporada tivesse dedicado tempo dramático ao assunto. Carol está a tornar-se uma personagem muito antipática, era altura de lhe devolver a humanidade que foi perdendo.
Mas de volta à acção, Carol e Ash preparam-se para partir. A minha questão foi: como é que aquele chaço velho vai atravessar o Atlântico? Não fui a única a questionar-se e alguém até foi perguntar ao ChatGPT se a viagem seria possível. O ChatGPT é mais optimista do que nós humanos e responde "possível, mas improvável". Nós humanos sabemos o que o ChatGPT não sabe, que tudo o que pode correr mal tende a correr mal. Ash e Carol só fazem uma paragem na Gronelândia (onde acontecem outras coisas interessantes, se bem que um bocadinho absurdas) quando deviam ter parado mais vezes para reabastecer, e isto sem contar com o pormenor de que não fazem ideia de onde reabastecer nem do que os espera. Esta viagem de avião podia ter sido uma aventura épica para ser credível, mas aqui até estou disposta a dar um grande desconto: não era essa a história, era preciso levar Carol para França o mais depressa possível, foram tomadas liberdades. A questão é mais: trazer Carol para a história desta maneira valeu a pena?
Lamento muito dizer isto mas acho que a história estava a correr melhor sem a Carol. Não sei se o problema foi o enredo ter sido planeado para Daryl sozinho (porque Melissa McBride não pôde estar no início) e tiveram de meter a Carol às três pancadas. Pareceu-me tudo muito forçado, começando no momento em que Carol decide ir para França só porque um marmanjo qualquer lhe disse que Daryl estava lá. Tudo o que acontece a partir daí foi "martelado" e conveniente. Basta dizer que Carol encontra Daryl em questão de dias, num continente diferente, durante o apocalipse zombie. Isto foi mauzinho, mas a série melhora bastante passando estes dois primeiros episódios.

Horrores do mundo real
Em França, o exército Pouvoir des Vivants continua a perseguir Laurent, um rapaz considerado por um movimento religioso, a Union de l’Espoir, como um novo messias. Nesta temporada descobrimos que os dirigentes da Union de l’Espoir também não são bons. Laurent é considerado um milagre porque nasceu de uma mãe zombie e é julgado imune ao vírus zombie, não por qualquer motivo científico mas apenas pela fé cega. Na temporada anterior assistimos ao nascimento. A mãe morreu no parto, transformou-se, e o bebé foi-lhe retirado, nada mais que isto. Os líderes da Union de l’Espoir querem submeter Laurent a uma cerimónia onde é mordido por um zombie para provar que é imune e "enviado por Deus". 
(Esta ideia já tinha sido abordada em "Fear The Walking Dead", em que o líder de uma comunidade era reverenciado por ter sobrevivido à dentada de um zombie, mas afinal não era uma dentada de zombie e era tudo uma falácia alimentada pelo próprio para "manter a ordem" no caos.)
Ou seja, Daryl e Isabelle passaram a primeira temporada a levar Laurent para uma armadilha. Agora estão todos dentro da armadilha e o Pouvoir des Vivants também anda atrás deles. Nesta temporada compreendemos melhor as razões do Pouvoir des Vivants, mas se uns são fanáticos religiosos os outros são fascistas. São todos maus e todos querem, no fundo, manter o poder sobre os seguidores. Até há algumas "bocas" políticas sobre a realidade actual que não costumavam aparecer em "The Walking Dead". Gostei, não estava à espera.
Também gostei dos paralelismos entre o Pouvoir des Vivants e os nazis, totalmente explícitos nesta temporada. Há uma cena arrepiante em que os prisioneiros são separados e transportados em camiões diferentes consoante o seu "valor" e o seu "fim". O cenário de França ajuda a invocar estes fantasmas.

Dépaysant
Por falar em cenário de França, uma das palavras de que Daryl gosta muito é "dépaysant", que significa algo como mudança de ares que faz uma pessoa ver as coisas de maneira diferente. Este spin-off teve esse efeito positivo no universo The Walking Dead. Continuo a dizer que "Daryl Dixon" nem precisava de enredo, a gente via só pelos zombies e pelos cenários. Os cenários são tão bons, mas tão bons, que somos levados a perdoar os problemas de realismo como a viagem de Carol. Nesta temporada destaco as cenas no Louvre, que foram mesmo filmadas no Louvre (fui confirmar), e as cenas no Mont Saint Michel e nas catacumbas. Não é todos os dias que vemos zombies no Louvre. Genet, a líder do Pouvoir des Vivants, e sua braço-direito Sabine (que aqui, coitada, tem cara de Estaline, e não inocentemente) eram empregadas de limpeza no museu quando aconteceu o apocalipse. Isto permite-nos ver mais cenas do início do apocalipse, e adorei! Os primeiros zombies, o primeiro pânico, a sociedade a colapsar. O início foi sempre a minha parte preferida e, de certa forma, tenho apreciado ver poucas cenas polvilhadas pelos diferentes spin-offs para não perder o impacto. A Mona Lisa também se torna, de certa maneira, uma personagem, um símbolo de poder. O interesse deste spin-off em França (ou na Europa em geral) sempre foi abordar como diferentes culturas se adaptavam ao apocalipse zombie. Tenho a certeza de que esta interpretação está cheia de clichés e de que nada disto aconteceria assim na vida real, mas admito que está bem pensado da perspectiva de alguém de fora. Eu fiquei muito nervosa com o perigo de acontecer alguma coisa à Mona Lisa. 
Como já disse na análise à primeira temporada, a opção de colocar Daryl em França parecia descabida mas funcionou pelo contraste. Daryl caiu de pára-quedas no ambiente cultural mais sofisticado que ele já tinha visto fora da televisão, sem falar uma palavra de francês, e tem-se aguentado com muito estilo e sem deixar de ser ele próprio. Isto revela características de Daryl que não lhe conhecíamos porque nunca tinha sido preciso mostrá-las: abertura de espírito, adaptabilidade, e um à-vontade que era muitas vezes ofuscado por outros protagonistas mais espalhafatosos. Esta spin-off está a fazer justiça a Daryl Dixon.
Por outro lado, ter Daryl e Carol em França deu azo a momentos de humor muito bem conseguidos e até patuscos, como Daryl a ensinar-lhe francês ou a cara de Carol quando entrou no Demimonde em Paris. O Demimonde é um bar que podia existir nos nossos dias, com dançarinos exóticos, travestis e temas bondage (e que se imagina muito mais excessivo depois do apocalipse zombie, mas para manter a série acessível ao público mais jovem não há verdadeira nudez nem nada do que poderia haver). Carol e Daryl vêm de um meio culturalmente limitado e puritano. Nenhum deles fala no assunto, mas a cara de Carol diz tudo.


Os melhores zombies de Hollywood...
"Daryl Dixon" não desilude neste campo. Os zombies continuam a ser do melhor que há. Destaco os zombies da Gronelândia e do Túnel da Mancha, onde vemos zombies bioluminescentes, fantásticos, devido a um tipo de fungo.
Os super-zombies do Pouvoir des Vivants também estão mais aperfeiçoados. Afinal sempre andavam a tentar criar soldados zombies. Ainda não conseguiram controlá-los (e aposto que nunca irão), mas o soro das experiências está a torná-los mais estáveis e perigosos. Nesta segunda temporada os super-zombies já não explodem, como acontecia na primeira, embora continuem a matar-se uns aos outros, o que não dá grande exército. 
Agora que já vi "The Walking Dead: The Ones Who Live" e "The Walking Dead: World Beyond", a minha teoria de que a CRM (República Cívica) e os cientistas franceses estavam a trabalhar em conjunto ainda faz mais sentido. O universo The Walking Dead tem alimentado este enredo às pinguinhas e, devo admitir, até ficaria muito surpreendida se tudo batesse certo ao longo das diferentes spin-offs, mas a verdade é que pelo menos não se têm contradito.
Se há uma coisa que tem sido topo de gama e consistente na franchise toda, desde o primeiro episódio, é a qualidade dos zombies. Se há outra coisa consistente é a estupidez selectiva dos personagens, que os coloca em maior perigo do que deviam correr.

... e a estupidez selectiva
"The Walking Dead: Daryl Dixon - The Book of Carol" volta a ter um momento de extrema estupidez como já não víamos há muito tempo. Ash fica preso num carro cercado de zombies. Nestes casos, o que Daryl e Carol costumam fazer é atrair os zombies para outro sítio para resgatarem a pessoa. Aqui, estupidamente, enfiam-se no carro também. Ficam os três presos dentro do carro, cercados por zombies. Isto é um erro de iniciantes do apocalipse que Carol e Daryl já não cometeriam. Mas a série quis mostrar um ambiente claustrofóbico e tenso de dentro do carro e achou boa ideia sacrificar a inteligência de Daryl e Carol. Nem era preciso. Ash é um bocadinho iniciante, servia para fazer a cena, e ninguém acredita que aconteça alguma coisa a Daryl e Carol devido ao plot armour. Então para que é que aquilo serviu? Porque é que esta série gosta tanto de se auto-sabotar? Não percebo. Este era o tipo de disparate totalmente evitável e desnecessário.

Linha temporal
Em "The Walking Dead: Daryl Dixon - The Book of Carol", Carol diz que Sofia morreu há 12 anos. Isto deixou-me um pouco perplexa porque tinha a ideia de que já tinham passado pelo menos uns 15 anos desde o apocalipse. Em "The Walking Dead: Dead City", o filho de Maggie já tem 15 ou 16 anos, pelo menos, e Hershel já nasceu pelo menos um ano depois do apocalipse. Isto pode significar que "The Walking Dead: Dead City" se passa mais à frente do que "Daryl Dixon", mas vou deixar esta nota aqui para o caso de ser preciso confirmar.

Geralmente os últimos episódios não são brilhantes, mas neste caso destaco o último episódio como um dos melhores. O começo de "Daryl Dixon - The Book of Carol" foi atabalhoado, sim, e a série foi caindo em alguns maus hábitos que a primeira temporada conseguiu disfarçar melhor (como a chegada de Daryl a França, que também não é de recomendar), mas foi melhorando ao longo dos episódios e o final conseguiu resolver o enredo de modo muito satisfatório e abrir espaço para novas aventuras na terceira temporada. Continuo a dizer que o ponto forte desta spin-off foi a mudança para um cenário completamente diferente (o tal dépaysant) e que ia ser muito divertido ver o apocalipse zombie noutros países da Europa e do mundo.
Nem é preciso mais nada. "Daryl Dixon" já é a minha spin-off preferida.

ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 1 vez

PARA QUEM GOSTA DE: The Walking Dead, zombies

terça-feira, 23 de setembro de 2025

We Have Always Lived In The Castle (2018)

Tendo em conta que esta é uma adaptação do romance homónimo de Shirley Jackson, a mesma escritora de "The Haunting of Hill House" (brilhantemente imortalizado no cinema como "The Haunting"), é quase estranho que "We Have Always Lived In The Castle" não contenha qualquer elemento sobrenatural ou fantasmagórico. Há outra espécie de terror, a que eu chamo terror quotidiano (ver ali acima na descrição do blog) que se prende com o mal que as pessoas fazem umas às outras. Sim, também existe uma mansão odiada pelas pessoas da vila mais próxima ("the castle"), mas porque os seus donos, os Blackwood, sempre foram muito ricos e snobs.
Para piorar a situação, há seis anos, na narrativa, um homicídio com arsénico matou o patriarca da família, a sua esposa e a sua cunhada. Constance Blackwood, a filha mais velha, chegou a ser acusada em tribunal, mas foi ilibada. Tanto Constance como a sua irmão mais nova Mary Catherine (conhecida como Merricat) têm vasto conhecimento das plantas venenosas que crescem no enorme jardim que rodeia a sua mansão, o que leva as pessoas da vila a chamarem-lhes bruxas também, embora o arsénico tenha sido comprado para matar ratos e não tenha provindo da propriedade Blackwood.
Passados estes anos, Merricat, Constance e o tio Julian (irmão do pai de ambas) vivem quase isolados na mansão de família. Apenas Merricat, uma jovem de 18 anos, tem por missão ir à vila todas as semanas para comprar comida, o que ela nunca faz sem deixar feitiços de protecção (inventados por ela), como enterrar moedas de prata e bonecas e pregar livros às árvores. Constance vive em negação, sempre a sorrir, sempre simpática e agradável, sempre a cozinhar em trajes de dona de casa dos anos 50 excepto quando se veste a rigor para o jantar na sala. O tio Julian, que também foi envenenado mas sobreviveu, anda de cadeira de rodas e tem as capacidades cognitivas debilitadas, possivelmente devido ao envenenamento mas nunca é dito explicitamente. De todos, o tio Julian é o mais enervante. O "trabalho da sua vida" é escrever um livro sobre a tragédia que vitimou a família, e repete incessantemente as frases de abertura de cada capítulo (já vai em 44) sem nunca escrever uma linha, e ainda diz que lhe falta tempo para escrever, um homem que não faz outra coisa na vida. Merricat, por seu lado, gosta de debitar, à mesa, os seus conhecimentos sobre plantas venenosas e os efeitos letais de cada veneno. Convenhamos, é uma casa de doidos.
Esta rotina é ainda mais perturbada quando recebem a visita do primo Charles Blackwood, um galã que chega com o objectivo claro de se apossar do dinheiro da família sob a desculpa de vir "ajudar" (nos anos 60 só os homens é que supostamente sabiam lidar com dinheiro...) e começa imediatamente por cortejar Constance, que se encanta por ele. Merricat tenta por tudo afastá-lo da irmã, a quem ela adora, e da mansão, tentando fazer "feitiços" ainda mais fortes, mas sem sucesso.
Apesar de ser um interesseiro, Charles parece a única pessoa normal nesta casa, a que o próprio acaba por chamar "manicómio". É Merricat, que parecia uma vítima indefesa no começo da história, quem depressa se prova a má da fita.
O filme (ao contrário do livro) sugere fortemente que tanto Constance como Merricat foram vítimas de abusos por parte do pai, mas vítima ou não Merricat comporta-se agora como uma pessoa tóxica, tentando por tudo isolar a irmã, com quem tem uma relação de co-dependência. Tudo indica que Merricat é profundamente desequilibrada, ou autista, ou esquizofrénica, ou mesmo psicopata declarada, como se verá no final. É ela quem provoca o acontecimento que vai despertar o ódio latente nas pessoas da vila e que quase termina em linchamento. Merricat, lobo em pele de cordeiro, consegue por fim "guardar" a irmã só para si, perante a passividade de Constance que não reconhece o poder manipulativo da irmã sob a desculpa de "protecção".
Outras pessoas vão tirar diferentes conclusões deste drama fortemente psicológico, mas para mim esta foi a principal (ajudada por outros desenvolvimentos que não vou revelar).
Aliás, a personagem Merricat é tão desequilibrada que algo que o tio Julian diz me deixou confusa. O tio Julian repete incessantemente o que se passou na noite do homicídio, e, embora desorganizado, nunca muda de versão. A certa altura ele diz que Merricat morreu num orfanato enquanto Constante estava a ser julgada. O próprio Charles o contradiz: "Mas ela está aqui sentada!" O assunto nunca mais é abordado, mas isto leva-me a especular se esta Merricat não será uma intrusa, uma impostora, não uma bruxa má com poderes sobrenaturais mas uma daquelas pessoas que se infiltram junto de gente fragilizada e fácil de controlar. Isso explicaria muitos dos seus actos. Por outro lado, pode bem ser uma invenção da mente transtornada do tio Julian.
Não li o livro e tenho curiosidade quanto a isto, mas não me apetece nada fazê-lo porque li "The Haunting of Hill House" e não fiquei maravilhada com a escrita da autora nem esclarecida quanto ao que tencionava descobrir.
"We Have Always Lived In The Castle" vale pelo mistério, pela atmosfera inquietante de perfeita loucura disfarçada pela familiaridade de uma harmonia doméstica artificial, pelos cenários e ambiente dos anos 60 cuidadosamente recriados, pela sensação de estranheza e desastre iminente onde a história nos leva. Pode não ser a adaptação mais exacta do romance original, mas é um filme excelente que nos perturba e nos faz pensar, e recomendo vivamente.

17 em 20


domingo, 21 de setembro de 2025

Black Sea / Mar Negro (2014)

Esta é uma história de ganância e desespero. Uma empresa de salvamentos submarinos despede bastantes trabalhadores, deixando-os em péssima situação financeira. Mas, antes disso, um deles julga que descobriu a localização de um submarino nazi carregado de ouro, no Mar Negro, que se destinava à Rússia antes de ser afundado. Partilhando esta informação com os colegas, estes decidem ir resgatar o submarino por conta própria.
Depois de arranjarem um financiador para o empreendimento ilegal, com metade da tripulação britânica e metade russa, os marinheiros fazem-se às profundezas num submarino soviético muito velho a que alguém chama "sucata" e com razão. Mas os verdadeiros problemas vêm mesmo de dentro: alguns homens não querem partilhar o possível achado com os russos nem uns com os outros, e isto ainda antes de descobrirem que estão na realidade a trabalhar para a companhia que os despediu e que os quer utilizar para recuperar o ouro nazi. Isto é, foram enganados e o achado nunca ficaria para eles. O desespero e a ganância viram-nos uns contra os outros e colocam-nos em problemas técnicos fatais.
"Black Sea" é um filme interessante e tenso, um "Indiana Jones" sem heróis mas com muita acção e um desfecho amargo.

14 em 20 


terça-feira, 16 de setembro de 2025

Ready Or Not / O Ritual (2019)


No seu dia de casamento, Grace está prestes a realizar os seus sonhos: casar com o homem que ama, um dos herdeiros dos milionários Le Domas. Na mansão de família, depois da cerimónia e ainda antes da noite de núpcias, os recém-casados são chamados para que Grace participe numa espécie de iniciação à família a que todos os novos membros são sujeitos. Aparentemente é muito simples: Grace só tem de jogar um jogo, o que ela não estranha uma vez que a família fez fortuna no negócio do jogo. É então que o sogro conta a história do bisavô, um humilde trabalhador da marinha mercante que um dia encontra um passageiro, um tal de Mr. LeBail, que lhe entrega uma caixa misteriosa com uma condição: todos os futuros cônjuges da família têm de jogar o jogo que a caixa determinar.
Grace é convidada a tirar uma carta da caixa, no que ela participa considerando tudo aquilo uma excentricidade da família, quando lhe sai o Jogo das Escondidas em que ela, a noiva, tem de se esconder enquanto todos a procuram. O que Grace não sabe, e que o noivo não lhe disse, é que a família vai persegui-la e tenciona matá-la num ritual 100% satânico antes do nascer do sol porque os Le Domas acreditam que se não o fizerem o Diabo virá buscá-los (sim, os Le Domas sabem muito bem que fizeram um pacto com o Diabo e que a isso se deve a sua grande fortuna).
A princípio Grace acha que é uma brincadeira, até que percebe realmente o que se passa e que tem de fugir ou sobreviver numa casa completamente trancada em que até os criados e o mordomo, e inclusive as crianças da família, participam na caça.
“Ready Or Not” é considerado uma comédia negra, o que não me entra na cabeça porque não achei graça nenhuma, muito antes pelo contrário, e eu tenho um sentido de humor muito mauzinho e inclusivamente fartei-me de rir com “Insidious”. O filme é sangrento, tenso e assustador, às vezes é mesmo tétrico, e realmente notei algumas tentativas chochas de fazer humor enquanto uma jovem é perseguida e condenada à morte num ritual bárbaro. A certa altura ela cai acidentalmente dentro de um alçapão no estábulo onde a família guarda os cadáveres apodrecidos de toda a gente que matou. E isto era para rir?
Acredito que “Ready Or Not” podia ter sido um filme de terror excelente, algo mais ao nível de “Midsommar”, sem estas tentativas de “humor” que não tiveram graça nenhuma. Não estou de maneira nenhuma a dizer que um filme de terror não pode ter piadas. “Midsommar”, por exemplo, tem piadas e resultam. Algumas das piadas em “Ready Or Not” também resultam, como o cunhado que não está nada interessado em matar ninguém e passa a noite fechado na casa de banho com o telemóvel. Quando um amigo lhe pergunta como vai, ele responde: “Sabes como é… Merdas de família.” Isto teve piada porque a família realmente nos obriga a fazer merdas se quisermos participar nos rituais familiares. Tratar isto como mais uma merda é humor negro e engraçado. O resto do que tentaram fazer não é.
Mesmo assim gostei bastante da originalidade da história e recomendo. Simplesmente ignorem as partes que supostamente eram para ter piada.

13 em 20 (que podia ser mais sem as piadas chochas)

 

domingo, 14 de setembro de 2025

Outlander (2014 - ?) [sexta e sétima temporadas]

Jamie e Claire, a filha de ambos, Brianna, e o seu marido Roger MacKenzie, continuam as suas aventuras como colonos na América até ao eclodir da Revolução. Jamie e Claire tinham planeado regressar à Escócia, depois de algumas vicissitudes com os vizinhos, mas Jamie decide ficar e lutar contra os ingleses ao lado dos rebeldes conforme lhe dita a sua consciência libertária.
Esta é uma série romântica (e erótica) destinada sobretudo ao público feminino. A acção acontece muito devagar, mas é mesmo esse o propósito. Em todos os episódios tem de haver tempo para uma conversa profunda sobre sentimentos... e para fazer amor. Agora que Jamie e Claire já estão numa idade entradota, muitos dos momentos eróticos ficam a cargo de Brianna e Roger ou de outras personagens, mas os protagonistas não deixam de ter o papel principal.
A sexta temporada foi um bocadinho parada, na minha opinião, e resolvida às três pancadas nos primeiros episódios da sétima. As coisas começam a ficar mais interessantes com a Revolução Americana, as batalhas e as figuras históricas. Claire (que veio do futuro) sabe o desfecho, mas, felizmente, não conhece os pormenores nem as datas, o que mantém a tensão. Quando Jamie vai combater, um anónimo para a História, nunca sabemos se o destino dele não será morrer em batalha.
Já disse aqui que isto é mais uma telenovela, e as telenovelas têm destas coisas. A parte mais emotiva, para mim, foi quando Brianna e Roger tiveram de voltar ao futuro porque a sua bebé mais nova tinha um problema cardíaco. Não julguei que me afectasse tanto, mas pensando que Brianna vai viver num tempo em que sabe que os pais estão mortos no presente, embora vivos no passado, e que isto equivale a uma despedida antes da morte... custa um bocadinho.
Mas a decisão de enviar Brianna e Roger de volta para o futuro foi interessante. A nível de enredo eles já não tinham muito que fazer no passado, e no futuro Brianna começa a investigar o círculo de pedras como sendo um portal intertemporal, o que abre lugar a alguma ficção-científica, se bem que "Outlander" não seja o género de onde a esperar.
No entanto, o que me comoveu mais na sétima temporada foi a canção do genérico cantada por Sinéad O'Connor, uma das últimas coisas que ela gravou. Isto apanhou-me muito de surpresa porque só vi esta temporada em 2025. Como alguém disse em comentários, a canção parece ter sido escrita para ela. A letra adquire toda uma dimensão de nos deixar arrepiados.


ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 1 vez

PARA QUEM GOSTA DE: romântico, drama, erótico, História

 

Outlander | Opening Credits ft. Sinéad O'Connor | Season 7 

 
Sinéad O'Connor - The Skye Boat Song (Revolutionary Version) | Outlander: Season 7
 


terça-feira, 9 de setembro de 2025

Underwater / Submersos (2020)

Não gostei deste filme por várias razões. A principal, as personagens não têm personalidade. Kristen Stewart (a miúda do Twilight) é Norah, investigadora numa base de uma empresa de extracção petrolífera situada algures na Fossa das Marianas (nunca percebi se mesmo no fundo ou muito perto do fundo) onde a profundidade alcança os 10.000km. Nunca sabemos nada de Norah, pelo que depreendo que a intenção era mesmo pensar nela como a miúda do Twilight, com o aliciamento de a vermos várias vezes em roupa interior (muito desportiva, mas é roupa interior).
Mal o filme tinha começado, algo (um tremor de terra ou outra coisa que vai aparecer depois) faz com que a base sofra danos estruturais e fique inundada, inutilizando os meios de fuga. Norah e meia dúzia de sobreviventes decidem descer até uma base antiga mais abaixo (mesmo no fundo, ou ainda não) que vai implicar terem de caminhar pelo leito do mar em fatos especiais. Durante a descida há alguém que implode dentro do fato devido à pressão astronómica da profundidade, o que teria sido bastante perturbador se tivéssemos conhecido a personagem, mas desta forma foi só um momento de choque gratuito e nem sequer conseguimos perceber bem quem morreu.
A segunda razão porque não gostei deste filme foi a grande dificuldade em acompanhar a velocidade alucinante da acção. Desafio qualquer pessoa a ver o filme comigo e a conseguir explicar-me exactamente, a cada momento, o que se passa e porquê. Demorei umas três horas a ver o filme com tanto rewind que tive de fazer nas partes em que a acção me perdeu completamente, e mesmo assim não consegui perceber tudo o que se passava.
A caminho da base, os sobreviventes são atacados por um monstro marinho das profundezas. A terceira razão por que não gostei deste filme é que algumas das cenas com os monstros são decalcadas de "Alien", muito especialmente a do monstro bebé. Uma espécie desconhecida de criaturas marinhas (que podem ou não ter provocado o acidente na base principal, não se percebe o que realmente aconteceu) devia ter sido o ponto alto do filme, mas infelizmente os monstros não foram bem explorados e não são tão assustadores como poderiam ser. Quem esperar ver aqui um "Alien" submarino vai ficar muito desapontado.
Saliento a única cena interessante do filme, que foi a perspectiva de quem está a ser engolido vivo, possível porque o engolido estava dentro do fato. Se não é original, é pelo menos pouco habitual. Tudo o resto neste filme nos dá a sensação de que já vimos semelhante e muito melhor, e que o realizador se limitou a fazer uma cópia mazinha para arrecadar uns trocos.
Nem Kristen Stewart de bikini, suada e a exibir os músculos, salva "Underwater" do completo afundanço. Que desperdício.

11 em 20

domingo, 7 de setembro de 2025

Faro (2025)


Um importante advogado de Faro aparece assassinado, vestido em roupa bondage, amarrado ao mastro do seu próprio veleiro. Quem o matou, e porquê? Dois inspectores da Polícia Judiciária começam a investigação.
"Faro" é um policial muito bem feito, que consegue também abordar temas actuais como a imigração, a corrupção, a especulação imobiliária. 
Ao mesmo tempo, "Faro" remete ao período pós-revolução em que terrenos foram ocupados ilegalmente para construir casas, neste caso na ilha de Faro. (Por acaso não sabia que as ocupações tinham acontecido até tão tarde.) Um grupo de investimentos quer comprar todas as habitações da ilha para construir um grande resort turístico. Um dos moradores, Zé Maria, recusa-se a vender. Quando as ofertas não resultam, os investidores recorrem à violência.
A narrativa é simples e escorreita, mas as questões abordadas são complexas e controversas. No decurso da série são apresentados ambos os lados da moeda.
Gostei da narrativa directa, dirigida ao desvendar do mistério, sem se perder em dramatismos desnecessários neste tipo de enredo. Confesso que desde o primeiro episódio tinha uma ideia mais ou menos formada de quem tinha matado o advogado e que me surpreendeu a quantidade de outros suspeitos que foram aparecendo, todos eles com motivo e oportunidade. Só se descobre ao certo no último episódio, e faz sentido. 
Até não tencionava ver a série uma segunda vez, porque foi tão fácil de seguir o enredo, quando me surgiu uma dúvida. Essa dúvida ficou esclarecida, mas ao segundo visionamento surgiu-me outra. Porque é que Marta se interessou por Ernesto, o filho do advogado? Da primeira vez pensei que fosse ele que tivesse as gravações. Sendo assim, pode ter havido muitas motivações, mas não percebi exactamente o porquê.
Também tenho algumas questões quanto à casa de bondage/SM. Admito que não conheço a cena "à portuguesa", se é que isso existe, mas do que conheço da cena em geral não é um sítio onde qualquer pessoa vá tomar uns copos. São clubes com muitas regras, alguns onde só se entra por convite e com "recomendação", não é "porta aberta". Fiquei um bocadinho perplexa porque toda a gente lá ia. Não estou mesmo a imaginar um engenheiro Seabra num sítio desses, a não ser que não seja só uma casa de bondage...
"Faro" é uma série que se vê muito bem e um mistério interessante e bastante português. Recomendo vivamente.

Por último, e só para não dizerem que sou uma marreta a bater sempre na mesma tecla, esta série NÃO tem problemas de som. Contra factos não há argumentos.

ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 1 vez

PARA QUEM GOSTA DE: policial, crime, História

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Henry V (1989)

Apesar de ser um filme antigo, não tenho memória de alguma vez o ter visto nem fazia ideia de que era uma adaptação da peça de Shakespeare. Fiquei agradavelmente surpreendida por este "Henry V" se ter mantido tão actual como se tivesse sido estreado ontem.
Isto deve-se muito às palavras intemporais de Shakespeare, o relato das aventuras militares de Henrique V que invadiu a França porque achava que tinha direito à coroa francesa, e que, embora com um exército enfraquecido e em menor número, conseguiu a vitória sobre o país invadido e conquistou o trono.
Não sou doida por Shakespeare mas admiro muito os actores shakespearianos pela tarefa espinhosa de articular aqueles diálogos artificiais e obsoletos como se fossem a linguagem mais natural do mundo. O que não falta aqui são profissionais das peças de Shakespeare, actores da maior qualidade, e nota-se. Mas o maior trunfo do filme, aquilo que o faz parecer novo apesar de ter 35 anos, é o seu realismo, especialmente o realismo da batalha de Agincourt, sangrenta, lamacenta e brutal, como se faz agora. Muita gente se queixou das imagens em câmara lenta, e vão continuar a queixar-se, mas eu apreciei porque consegui acompanhar tudo o que estava a acontecer sem sentir que a acção saísse prejudicada.
Os franceses ficam muito mal nesta fotografia, e os feitos dos ingleses são grandemente exagerados, embora Shakespeare não tenha escondido algumas das faces mais repulsivas da guerra, mas Shakespeare estava a escrever para agradar a Elizabeth I, e se a aborrecesse podia acontecer-lhe algo de muito desagradável ao pescoço...
Só o futuro poderá dizer se este filme se vai manter tão intemporal como a peça, mas eu diria que 35 anos sem envelhecer é um óptimo auspício. Aconselho a toda a gente que gosta de adaptações de Shakespeare com excelentes actores.

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domingo, 31 de agosto de 2025

Wolf Creek (2005) vs série

Três turistas na Austrália encontram um destino macabro.
Eu receava que ter visto a série primeiro me estragasse o filme. Qual não foi a minha surpresa quando descobri aqui no arquivo que já tinha visto o filme, que já tinha escrito sobre ele, e que dei a mesma nota que ia dar agora. Tal como me parecia, é mais fácil esquecer um filme do que uma série. Uma série, tal como um livro, dá-nos literalmente mais tempo para conviver com os personagens, para os conhecermos, para nos causar impacto. Vou escrever outra vez sobre o primeiro filme "Wolf Creek" da perspectiva de quem viu a série.
Algumas pessoas não vão gostar do início do filme. A acção propriamente dita só começa lá para metade, mas eu acho que se justifica que assim seja. Para se compreender perfeitamente o horror que se segue é preciso dar uma ideia muito clara da vastidão do Outback australiano, difícil de imaginar para quem não conhece, horas e horas a conduzir no deserto sem se encontrar uma única pessoa na estrada ou qualquer vestígio de civilização. Este início faz precisamente isso: eles conduzem, conduzem, passam pela última bomba de gasolina, e continuam a conduzir. As imagens aéreas da paisagem, tão inclemente como deslumbrante, contribuem para esta percepção de que o próprio deserto pode ser letal se tiverem um acidente. Ao mesmo tempo, ficamos com a noção de que são pessoas completamente normais, que não fizeram nada para merecer o que lhes acontece.
Os três amigos vão visitar Wolf Creek, a cratera de um meteorito que existe na realidade. A certa altura há uma vaga alusão ao sobrenatural, quando uma das raparigas questiona porque é que o meteorito caiu precisamente ali, como se algo de maléfico o tivesse atraído (o que volta a ser abordado na série), e o rapaz conta algumas histórias de encontros imediatos, mas felizmente é apenas uma questão de sugestão psicológica. Um dos aspectos que me fazem gostar desta franchise é que não existe sobrenatural, nem aqui faz falta nenhuma.
Enquanto eles exploram, a bateria do carro fica descarregada, ao mesmo tempo que os relógios param, talvez por causa do meteorito, ou talvez não, porque se fosse um fenómeno conhecido o local não estava nos roteiros turísticos, como é o caso. Por outro lado, conhecendo o método de operar de Mick Taylor, não é de estranhar que tenha sido ele a sabotar o carro, mas isso não explica os relógios.
Obviamente, Mick aparece para os "ajudar" e rebocar, mais uma vez durante horas e horas, para ainda mais longe da civilização. Já tendo visto este filme uma vez (apesar de esquecido), e depois de ter visto a série, esta parte ainda me arrepiou mais.
No longo início do filme os turistas confrontam-se com personalidades "rústicas", mal-encaradas e malcriadas, e imagino o espectador a tentar adivinhar qual destes vai ser o assassino, mas nada nos pode preparar para um psicopata sádico como Mick Taylor.
Como disse aqui na primeira crítica, podia acontecer a todos. Um acidente, um campónio prestável, um pouco bronco mas aparentemente bem-humorado e de riso fácil, qualquer pessoa dava o "desconto". É precisamente este sentimento de inferioridade que faz Mick odiar os forasteiros. Ou melhor, que lhe serve de desculpa para os torturar e assassinar. Neste primeiro filme há sugestões de uma componente sexual subjacente, mas percebe-se claramente que não é essa a principal motivação de Mick Taylor. Mick, um caçador, não tem um pingo de empatia e usa a tortura para se divertir. Do que ele gosta mesmo é de infligir medo, dor e morte, de capturar e torturar seres humanos, e gosta de o fazer durante dias, semanas ou meses, conforme eles "durem", segundo o próprio. Depois de ver a série sabemos que Mick não se mete com os locais, apenas com os turistas e forasteiros com a "mania de que são bons", que quase vão ali "provocá-lo". Mas também sabemos que não passa de um pretexto.
A certa altura, a protagonista tem uma hipótese de o matar mas apenas o deixa inconsciente. Isto é muito comum em filmes de terror, mas aqui faz todo o sentido. A protagonista está em estado de choque com os horrores a que assistiu e só quer fugir dali o mais depressa possível, não tem o discernimento nem o sangue frio para planear mais além. Mais uma vez, o longo início ajuda a estabelecer este estado de espírito de turista normal, numa onda de descontracção, a divertir-se com os amigos, que subitamente se depara com um cenário de terror.
"Wolf Creek" é vagamente baseado nos crimes reais de um serial killer que assaltava e matava turistas no Outback australiano. As autoridades não sabem ao certo quantas foram as vítimas. Acho que este primeiro filme conseguiu estabelecer perfeitamente como é que foi possível. Mick Taylor é como um espírito do mal neste território inóspito, que se funde na paisagem como um camaleão, que mata impunemente há décadas sem deixar rasto. Há muitos filmes sobre turistas apanhados por serial killers em sítios ermos, mas o que distingue "Wolf Creek" é o deserto da Austrália, ele próprio uma personagem hostil à vida onde é fácil desaparecer para sempre.

Nota: Já depois de escrever este artigo li algumas críticas da altura que acusavam o filme de misogenia. Posso garantir, especialmente depois de ver a série, que Mick Taylor não é só misógino. Mick Taylor é misógino, é racista, é xenófobo, é homofóbico, mas não é pessoa de discriminar: odeia todos os turistas e tortura-os a todos igualitariamente.

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